Seu Jorge vem com <i>velho esquema novo</i>

Atacando na música , no teatro e no cinema, o ex-Farofa Carioca avisa: veio para trazer a evolução do samba

Marco Antonio Barbosa
10/09/2001
Clique para ampliar
A vida de Seu Jorge é daquelas nas quais o clichê "isso daria um filme" se encaixa perfeitamente. No entanto, apenas para usar um outro chavão, no caso do ex-vocalista do Farofa Carioca, a vida foi mais fantástica que a ficção. E não apenas rendeu um filme, mas também um musical de teatro e - principalmente - um disco. Em 2001 parece ser impossível parar de esbarrar com Jorge Mário da Silva - o Seu Jorge - nos noticiários dos cadernos culturais. Ele já deixou sua participação registrada no filme Cidade de Deus, baseado no best-seller de Paulo Lins, que retrata o dia-a-dia da violenta favela que dá título à produção. É uma das estrelas do musical Folias Guanabaras, que acaba de estrear no Rio, junto a Elza Soares e Rosi Campos (e a participação do recifense DJ Dolores). E também, afinal, agora arrumou um tempinho para falar sobre Samba Esporte Fino ouvir 30s (Regata), seu primeiro álbum solo. Um disco que aponta de onde Seu Jorge veio, o ponto no qual se encontra agora e para onde ele pretende ir. Levando a MPB junto.

"Eu precisava tomar uma iniciativa em nome do samba", reflete Seu Jorge. "Devo muito ao samba, não só musicalmente, mas como pessoa também. Foi conhecendo artistas como Jovelina Pérola Negra, Bezerra da Silva e João Nogueira que eu aprendi a me comportar, a ser gente. Daí meti na cabeça que meu trabalho tinha que ser a evolução do samba, mostrar para onde o ritmo ainda pode seguir." De fato, Samba Esporte Fino é uma verdadeira viagem que aponta novos caminhos para o (bom) batuque. Miscigenado com o funk, o sacundin de Jorge Ben, o reggae e o mais puro e enraizado fundo de quintal, o som de Seu Jorge é também um verdadeiro retrato cantado da musicalidade carioca.

"Quem me deu esse estalo foi o Chico Science. Quando vi um show dele, aquela mistura do regionalismo nordestino com a modernidade pop, aquilo foi uma porrada... Fiquei imaginando um jeito de fazer isso com as referências que eu tinha aqui no Rio", explica Seu Jorge. Daí surgiu o Farofa Carioca, ponta de lança do dito movimento MPC (Música Popular Carioca), em 1996, junto com Pedro Luís & A Parede, O Berro, Bangalafumenga e outros jovens grupos. Jorge conta: "Quando formei o Farofa, queria fazer uma coisa pop fundamentada na tradição, no cavaquinho, no tantã. Era para ser um grupo que pudesse tocar em qualquer canto - na praia, na calçada, sei lá - só com aquele instrumental básico."

Em 1999, a MPC (rótulo criado pela imprensa, e esnobado pelo cantor - "nunca tivemos uma bandeira, um manifesto, ou coisa parecida") ficou pequena para o horizonte musical de Seu Jorge. "Nessa época eu precisava de uma abertura para cantar só que fosse natural e verdadeiro para mim. Porque o Farofa sempre teve uma proposta de misturar muito os sons, pegar vários estilos diferentes de uma vez só. E eu estava querendo outra coisa, queria ter o meu som próprio, falar só do que era importante para mim. " A fonte para este renovado Seu Jorge - e para a música que se ouve em Samba Esporte Fino - foi uma certa MPB que andava meio esquecida.

"Eu sentia muita falta da música que aparecia no Brasil por volta do final dos anos 70, começo dos 80. Gente como Clara Nunes, Roberto Ribeiro, João Nogueira (a quem o disco é dedicado). Esse pessoal faz falta. É uma boa fase da música que estava sem 'visitantes', e meu disco é como uma visita à essa época. Nos anos 90 acho que a MPB ficou estagnada, repetindo os velhos clichês. Pô, estava na cara de todo mundo, mas ninguém ouvia mais. É como o Chico (Science) dizia: 'modernizar o passado é uma evolução musical'. No disco eu brinco com várias referências: Zeca Pagodinho, Chico Buarque, Jorge Ben, mas tudo do meu jeito, soando do meu modo. Até quando eu toco um reggae (Hágua), não soa como Bob Marley. O meu reggae também é brasileiro. "

Assim, bebendo na tradição e olhando o futuro, Seu Jorge foi construíndo Esporte Fino. O marco zero foi a gravação de uma demo-tape com o produtor (brasileiro criado nos EUA) Mario Caldato Jr. - um dos nomes mais quentes do pop "antenado" nos EUA, e produtor dos dois últimos álbuns de estúdio do Planet Hemp. "Viajei no ano passado com o Planet para Los Angeles, quando eles foram mixar A Invasão do Sagaz Homem-Fumaça ouvir 30s com o Mario. E o cara é um monstro no estúdio... Eu já tinha combinado com ele de fazermos uma demo minha - antes eu cheguei até a procurar o David Byrne, mas não deu certo. Gravamos três músicas, ele produzindo e eu dando uma de Stevie Wonder (risos), tocando todos os instrumentos", conta Seu Jorge. A fitinha incluía os sambas-rock Carolina (faixa de trabalho do CD) e Te Queria, e o partido-alto O Samba Taí, esta no melhor estilo de João Nogueira. "O Caldato chegou para mim e disse (imita o sotaque "portunglês" do produtor): 'Negão, O Samba Taí é A música, isso vai deixar todo mundo doido, presta atenção, não deixa essa música escapar (risos)."

"Mostrei a fita para algumas gravadoras, mas todo mundo ficava com medo. Afinal, era um trabalho musicalmente ousado, e ainda tinha o Mario produzindo - achavam ele muito caro. Mas qualidade não tem preço", afirma Seu Jorge. Uma conversa com a cantora Paula Lima ( Seu Jorge faz um dueto no álbum de estréia dela, É Isso Aí ouvir 30s) o convenceu a procurar Bernardo Vilhena, da gravadora Regata - a casa da nova música negra brasileira, com um cast que junta o Clube do Balanço, Ivo Meirelles e a Banda Black Rio, além dos citados. "Expliquei para o Bernardo qual era a minha idéia para o disco, esperava que ele fosse ficar de pé atrás... mas nada, ele bancou, me mandou para Los Angeles trabalhar com o Caldato. O Bernardo é total sangue-bom, o cara está gritando pela música honesta, pelo som negro que ainda está na periferia", relembra Jorge.

Entronizado na Regata, Seu Jorge é mais um a engrossar o revival do samba-rock, que vem trazido por novatos como ele mesmo e veteranos como o Trio Mocotó. "O samba-rock não é moda. Todo mundo que está fazendo este som hoje é autêntico, de raiz mesmo. O problema é o que o Brasil esqueceu do samba-rock, esqueceu que até Erasmo Carlos já fez samba-rock - o Tremendão já foi cabelo-duro, cara (risos)!", afirma Seu Jorge. "Mas a mídia fica muito em cima do que acontece em São Paulo. Tem muita gente incrível aqui no Rio que ninguém conhece... Serginho Meriti, Dhema, Bruno Maia, uma turma do suingue mesmo. Podem tentar pasteurizar o ritmo, explorar comercialmente, só que isso é normal, também aconteceu com o forró: o estilo tem altos e baixos, mas a raiz se mantém", crê o cantor.

Por mais emplogado que esteja com o álbum, Seu Jorge tem outras prioridades na agenda. Folias Guanabaras, no qual ele interpreta o papel de um deus (!) está em plena turnê. O musical usa como elenco de apoio bailarinos selecionados na Favela da Maré, uma das mais violentas do Rio de Janeiro. "Encerrando temporada no Rio, vamos para Salvador e São Paulo, e em abril do ano que vem viajamos para Washington (EUA)", conta o cantor. Cidade de Deus deve estrear no começo do ano que vem. "A Kátia Lund (diretora do filme) me convidou e eu fui achando que iria ficar uns quatro dias filmando. Quando vi, passei um mês e meio", diz Seu Jorge. Sua participação na fita veio logo depois de ele ter recusado o papel-título de Madame Satã, filme sobre o legendário bandido carioca. Detalhe: a aventura cinematográfica veio emendada em uma longa turnê que o cantor fez com o Planet Hemp. "O Madame atrasou, então eu desisti para poder gravar o disco. Saí do estúdio, aí me convidaram para o Cidade. Passei um tempão saindo da cama para a van, da van para o trabalho, do trabalho para a van..."

E que isso não soe como resmungos. Para um camarada que teve dois de seus irmãos assassinados na Baixada Fluminense, aprendeu música como corneteiro no Exército e passou sete anos vivendo nas ruas, a overdose de exposição e trabalho é muito bem vinda. "É tudo que sonhei. Para um cara que veio de Belford Roxo, já está bom demais - e o mais legal é que consegui isso tudo sem pirar a cabeça, sem achar que sou 'artista' ou mais importante que os outros. Sempre me vi como um trabalhador. Agora que arrumei logo três trabalhos de uma vez, como não poderia estar feliz?", pergunta-se um feliz Seu Jorge.