O eterno retorno de Mario Reis

Cantor ganha biografia celebrando seu legado

Marco Antonio Barbosa
29/05/2001
Precursor da bossa nova, primeiro cantor brasileiro apto a usar os recursos do som amplificado, "pai espiritual" de João Gilberto: muitos são os epítetos aplicáveis a Mario Reis, o "dândi do samba", o homem que desbancou o canto semi-operístico dos intérpretes dos anos 20 e 30 e abriu espaço para interpretações mais contidas e sutis. A história e a carreira do cantor estão no livro Mario Reis: O Fino do Samba, que o jornalista Luís Antônio Giron acaba de lançar (pela coleção Todos os Cantos, da Editora 34 - supervisionada pelo jornalista Tárik de Souza, editor de Cliquemusic). O volume acompanha as múltiplas revoluções na música brasileira protagonizadas por Mario, seu perfeccionismo, os artistas influenciados por ele e suas misteriosas - e estratégicas - retiradas do meio artístico, a primeira ainda aos 28 anos de idade.

"Nunca houve na história de nossa música um cantor como Mario Reis", afirma Giron, destacado crítico e pesquisador musical (atualmente colaborando com a Gazeta Mercantil de São Paulo). Muitas foram as inovações que o intérprete trouxe para a MPB, segundo o autor: "Ele retirou do samba seu traço folclórico, e o colocou nos salões da alta sociedade. Desenvolveu uma maneira mais cotidiana, coloquial de interpretar as canções. E orgulhava-se de ser pioneiro; tinha consciência de seu papel transformador", diz Giron.

O marco zero para a influência que Mario Reis excerceria sobre a MPB dos anos vindouros seria, para Giron, a introdução da amplificação elétrica (via microfone) no Brasil. "Em 1928, o sambista Sinhô - professor de violão de Mario - para cantar no estúdio Odeon, onde já existia uma máquina de gravação elétrica, com microfones. Foi uma novidade, porque o microfone permitia que os cantores dosassem as dinâmicas e ampliassem os padrões de interpretação. Mario Reis se valeu disso para criar um estilo brasileiro de cantar, influenciado por seu mestre, Sinhô. A forma de cantar no Brasil mudou não só por obra do microfone, mas da influência que Mario Reis exerceu sobre o modo de cantar ao microfone", narra Giron.

O canto "falado" e o sotaque carioca (em oposição à impostação e à influência do canto lírico notáveis em dois dos grandes cantores da época, Vicente Celestino e Francisco Alves) de Reis fizeram muito sucesso e causaram até polêmicas. "Dono de pulmões tonitruantes, Mario domou sua voz para sofisticá-la", lembra Giron. "Daí ele surge como um dos criadores do canto brasileiro moderno, despido da retórica do bel canto."

Giron sustenta que não haveria João Gilberto (e consequentemente, nem tampouco a bossa nova) sem Mario Reis. Pelo menos, não da maneira que o conhecemos. "João existiria sim como cantor semi-impostado, ao estilo de Lúcio Alves. Mas sua maneira especial de explorar as sutilezas da linha melódica e da fala baiana não teria sido possível sem a aparição da técnica de Mario. João levou adiante a descoberta da bossa descoberta por Mario. A bossa nova, de certa forma, é filha da bossa. E bossa era um termo que significava, na época, um jeito suave de cantar, com sábia ironia", afirma o autor.

Ao mesmo tempo em que operava toda esta revolução e lançava clássico após clássico, pinçados dos repertórios de Noel Rosa e Sinhô (Juraouvir 30s, Se Você Jurarouvir 30s, Fita Amarelaouvir 30s, Sabiáouvir 30s) Mario Reis ensaiava seu (primeiro) sumiço do meio artístico. Depois de gravar 161 discos de 78 rotações, o cantor anunciou sua retirada da música, em 1936. "Foi um anti-clímax, um lance de comédia. Ele parou de cantar para ser funcionário público do Distrito Federal, na época ainda na Guanabara", recorda Giron. Começa então a se construir a aura de mito em torno de sua figura. "Ele ingressou no anonimato, mas fazia questão de aparecer pública ou privadamente. Mas ao mesmo tempo em que fazia barulho, aprisionava sua vida particular num silêncio absoluto", conta o autor.

"Ele saiu subitamente de cena mas cantava sempre para seus amigos do Country Club do Rio. Fazia questão de rir e cantar entre seus pares. Quando alguém estranho aparecia, costumava sussurrar: 'Olha aí, gente! Tem roupa no varal!' E parava tudo. Ainda assim, fez reaparições como cantor, em ocasiões bem espaçadas, entre 1939 e 1971. Neste último comeback, voltou a causar sensação ao gravar o samba Bolsa de Amores, de Chico Buarque - música censurada pela ditadura militar - no LP Mario Reis, seu último registro. Dez anos depois de lançar esse disco, o cantor falecia no Rio, aos 76 anos, vítima de insuficência renal e embolia pulmonar.

No livro, que Giron classifica de "investigação quase detetivesca", trata-se também de uma questão bastante comentada e nunca confirmada: o suposto pendor homossexual de Reis, homem que nunca se casou e fazia segredo absoluto de sua vida amorosa. "Há três versões sobre a sexualidade do artista: teria sido um abstêmio sexual; teria amado às escondidas, não revelando suas fontes de prazer; por fim, teria sido um gay enrustido numa época em que a categoria nem sequer existia", relata Giron. "Como ele não deixou herdeiros e seus objetos pessoais desapareceram, a construção de detalhes sobre sua vida foi muito difícil".