Leila Pinheiro ao vivo em dose dupla
Saiba como foi a gravação do show Mais Coisas do Brasil, que vai render um CD e um DVD
Marco Antonio Barbosa
04/07/2001
Dá para entender que Leila Pinheiro quer - ou talvez precise - surpreender seu público. No entanto, a embalagem na qual ela se envolveu para tanto em seu próximo projeto não poderia ser mais conservadora: o inevitável álbum ao vivo, inevitavelmente acompanhado de um DVD. Mais Coisas do Brasil Ao Vivo é o nome do disco, registrado em dois shows feitos no Espaço Universal (dentro da sede de sua gravadora, a Universal Music, no Rio de Janeiro) nos dias 3 e 4. Cliquemusic esteve presente à gravação para conferir quais seriam as possíveis surpresas - e as houveram, sim - que Leila sacaria da manga para evitar a obviedade de mais um disco ao vivo, em meio a tantos que inflacionam o mercado.
O repertório escolhido pela cantora para Mais Coisas... desperta interesse e frustração. Interesse pelo fato de que, das 14 músicas apresentadas, apenas cinco foram previamente gravadas pela cantora (descontando a rápida citação de Vós Sois o Lírio Mimoso, de Euclides Faria, registrada no álbum Outras Caras, de 1991). E frustração quando se percebe que não houve ousadia por parte de Leila na escolha de suas novas interpretações. É bom fugir dos sucessos mais óbvios e da fixação bossanovística, mas é ruim escorar-se em canções já no limite do batido.
Vestida com um sobretudo azul, Leila recepcionou a platéia (que incluía famosos como Nana Caymmi, João Bosco e Zélia Duncan) com bom humor. À frente de uma banda com nove integrantes (mais a participação do diretor musical Jota Moraes, que assinou os arranjos), ela começa cantando Vós Sois o Lírio Mimoso e emenda em Verde (Costa Netto/Eduardo Gudin), a canção que a lançou na MPB em 1985, no Festival dos Festivais. A versão ganhou suíngue inaudito, na tabelinha entre os metais (pilotados por Marcelo Martins, Nelson e Elias) e a bateria de Jurim Moreira, entre o jazz e o samba. Outro sucesso, Besame (Flávio Venturini/Murilo Antunes), se segue. O tom é mais sutil, com o acordeon de Julio Teixeira fazendo a cama para a percussão tingida de latinidade.
Leila está cantando bem. Psicologicamente, porém, ela não deve estar tão segura - tanto que repete sua performance em Amor nas Estrelas (Roberto de Carvalho/Fausto Nilo), apenas para gravar outra versão idêntica. Roberto Menescal a acompanha na guitarra, seus acordes fazendo a ponte entre o jazz e a bossa. Leila, ao piano, leva a música para uma direção diferente da versão de Nara Leão, mas não apaga a lembrança da original. Você em Minha Vida, de Roberto/Erasmo mas famosa com Fafá de Belém, retoma o clima de sutileza, com direito a belas frases de sax.
Só que até, nada; afinal, sutileza é o mínimo que se espera de Leila Pinheiro. Então chega a hora de surpreender, e ela puxa uma versão de Monte Castelo (Legião Urbana) surpreendente. O arranjo fica caído para o rhythm'n'blues, incluindo a participação do grupo vocal paulista 4 Manos - puro gospel! O solinho meio blues do guitarrista Ricardo Silveira completa o momento black da noite. Pena que o andamento ficou meio arrastado... e Leila pede para repetir mais uma vez. O tom blueseiro permanece para o próximo número, Um Dia, Um Adeus (de Guilherme Arantes, um dos compositores favoritos da cantora). Mas aí a surpresa já se foi.
Tudo Bem - sim, de Lulu Santos - é a próxima e fica bem diferente da versão consagrada. O tecladista Glauton Campello injeta um piano elétrico caprichado, integrando-se à batida funkeada da cozinha. Aqui, e em outros momentos também, o som da banda de Leila aparenta-se ao tal Brazilian jazz tão apreciado pela Down Beat e publicações congêneres. E depois vem o segundo susto da noite: o fado Nem Às Paredes Confesso, transformado por Amália Rodrigues num verdadeiro standard, chega reprocessado em formato de sambinha, com violão, metais e mais percussão latina. Um espectador mais atento nota que Leila inverte as estrofes da letra; a cantora pede mais uma passagem pela canção, e não conserta a inversão. Talvez seja o ponto alto da intérprete durante o espetáculo.
Nos próximos números, um retorno à terra da redundância. Quando o Amor Acontece, pescaria mais do que manjada do repertório de João Bosco, segue em registro levemente latino, e o acordeon volta. E o ponteiro da obviedade vai lá em cima com Todo Azul do Mar (Flávio Venturini/Ronaldo Bastos). Nem o belo solo de clarineta, nem o clima lounge do arranjo consegue tirar a impressão de "barzinho-com-couvert-artístico" que já se impregnou na canção. Serra do Luar (Walter Franco), com Leila só ao piano, espana um pouco a impaciência. Nua Idéia (Caetano e João Donato), célebre com Gal Costa, traz banda e cantora de volta ao território da bossa nova, mas numa onda "um-banquinho-e-um-acordeon".
Leila fecha o show com dois sucessos, um seu e outro alheio. Catavento e Girassol é recriada com delicadeza, só no violão do autor Guinga, na voz de Leila e em leves fraseados de flauta. Algum tropeço imperceptível da cantora (que recria sua interpretação original com afinco) a faz pedir para o grupo repassar o número. Numa tentativa de encerrar em alto-astral um recital sóbrio (contido, até), Leila canta Andar com Fé, de Gil. Pede desculpas à audiência e termina cantando com a letra da canção nas mãos, enquanto os metais berram e disputam espaço com sua voz no arranjo.
A impressão final é contraditória. Leila Pinheiro está no ápice de sua capacidade técnica de cantora, exibe inegável bom gosto na escolha de repertório e na direção de sua banda. Falta, entretanto, a fagulha da emoção, o rasgar do protocolo. A postura ultra-conservadora que demonstra ao incluir certas canções frustra o ouvinte, até mesmo os fãs; por que não ousar, por que dar a cara a tapa repassando interpretações tão conhecidas - e pior, sem fazer esforço para deixar uma marca realmente pessoal sobre as canções? As condições muito rígidas da apresentação, com suas restrições técnicas (afinal, tratava-se de uma gravação), podem ter pesado na concepção do show. Mas não deveriam ter. Que fique bem claro: não há como levar gato por lebre comprando Mais Coisas do Brasil Ao Vivo em CD ou DVD. Ouvir-se-á boas canções e uma cantora de técnica apurada cercada de músicos excelentes. Quem estiver querendo (apenas) isso, vai festejar. Quem cobra vitalidade e emoção genuína de uma cantora, pode ficar meio decepcionado.
O repertório escolhido pela cantora para Mais Coisas... desperta interesse e frustração. Interesse pelo fato de que, das 14 músicas apresentadas, apenas cinco foram previamente gravadas pela cantora (descontando a rápida citação de Vós Sois o Lírio Mimoso, de Euclides Faria, registrada no álbum Outras Caras, de 1991). E frustração quando se percebe que não houve ousadia por parte de Leila na escolha de suas novas interpretações. É bom fugir dos sucessos mais óbvios e da fixação bossanovística, mas é ruim escorar-se em canções já no limite do batido.
Vestida com um sobretudo azul, Leila recepcionou a platéia (que incluía famosos como Nana Caymmi, João Bosco e Zélia Duncan) com bom humor. À frente de uma banda com nove integrantes (mais a participação do diretor musical Jota Moraes, que assinou os arranjos), ela começa cantando Vós Sois o Lírio Mimoso e emenda em Verde (Costa Netto/Eduardo Gudin), a canção que a lançou na MPB em 1985, no Festival dos Festivais. A versão ganhou suíngue inaudito, na tabelinha entre os metais (pilotados por Marcelo Martins, Nelson e Elias) e a bateria de Jurim Moreira, entre o jazz e o samba. Outro sucesso, Besame (Flávio Venturini/Murilo Antunes), se segue. O tom é mais sutil, com o acordeon de Julio Teixeira fazendo a cama para a percussão tingida de latinidade.
Leila está cantando bem. Psicologicamente, porém, ela não deve estar tão segura - tanto que repete sua performance em Amor nas Estrelas (Roberto de Carvalho/Fausto Nilo), apenas para gravar outra versão idêntica. Roberto Menescal a acompanha na guitarra, seus acordes fazendo a ponte entre o jazz e a bossa. Leila, ao piano, leva a música para uma direção diferente da versão de Nara Leão, mas não apaga a lembrança da original. Você em Minha Vida, de Roberto/Erasmo mas famosa com Fafá de Belém, retoma o clima de sutileza, com direito a belas frases de sax.
Só que até, nada; afinal, sutileza é o mínimo que se espera de Leila Pinheiro. Então chega a hora de surpreender, e ela puxa uma versão de Monte Castelo (Legião Urbana) surpreendente. O arranjo fica caído para o rhythm'n'blues, incluindo a participação do grupo vocal paulista 4 Manos - puro gospel! O solinho meio blues do guitarrista Ricardo Silveira completa o momento black da noite. Pena que o andamento ficou meio arrastado... e Leila pede para repetir mais uma vez. O tom blueseiro permanece para o próximo número, Um Dia, Um Adeus (de Guilherme Arantes, um dos compositores favoritos da cantora). Mas aí a surpresa já se foi.
Tudo Bem - sim, de Lulu Santos - é a próxima e fica bem diferente da versão consagrada. O tecladista Glauton Campello injeta um piano elétrico caprichado, integrando-se à batida funkeada da cozinha. Aqui, e em outros momentos também, o som da banda de Leila aparenta-se ao tal Brazilian jazz tão apreciado pela Down Beat e publicações congêneres. E depois vem o segundo susto da noite: o fado Nem Às Paredes Confesso, transformado por Amália Rodrigues num verdadeiro standard, chega reprocessado em formato de sambinha, com violão, metais e mais percussão latina. Um espectador mais atento nota que Leila inverte as estrofes da letra; a cantora pede mais uma passagem pela canção, e não conserta a inversão. Talvez seja o ponto alto da intérprete durante o espetáculo.
Nos próximos números, um retorno à terra da redundância. Quando o Amor Acontece, pescaria mais do que manjada do repertório de João Bosco, segue em registro levemente latino, e o acordeon volta. E o ponteiro da obviedade vai lá em cima com Todo Azul do Mar (Flávio Venturini/Ronaldo Bastos). Nem o belo solo de clarineta, nem o clima lounge do arranjo consegue tirar a impressão de "barzinho-com-couvert-artístico" que já se impregnou na canção. Serra do Luar (Walter Franco), com Leila só ao piano, espana um pouco a impaciência. Nua Idéia (Caetano e João Donato), célebre com Gal Costa, traz banda e cantora de volta ao território da bossa nova, mas numa onda "um-banquinho-e-um-acordeon".
Leila fecha o show com dois sucessos, um seu e outro alheio. Catavento e Girassol é recriada com delicadeza, só no violão do autor Guinga, na voz de Leila e em leves fraseados de flauta. Algum tropeço imperceptível da cantora (que recria sua interpretação original com afinco) a faz pedir para o grupo repassar o número. Numa tentativa de encerrar em alto-astral um recital sóbrio (contido, até), Leila canta Andar com Fé, de Gil. Pede desculpas à audiência e termina cantando com a letra da canção nas mãos, enquanto os metais berram e disputam espaço com sua voz no arranjo.
A impressão final é contraditória. Leila Pinheiro está no ápice de sua capacidade técnica de cantora, exibe inegável bom gosto na escolha de repertório e na direção de sua banda. Falta, entretanto, a fagulha da emoção, o rasgar do protocolo. A postura ultra-conservadora que demonstra ao incluir certas canções frustra o ouvinte, até mesmo os fãs; por que não ousar, por que dar a cara a tapa repassando interpretações tão conhecidas - e pior, sem fazer esforço para deixar uma marca realmente pessoal sobre as canções? As condições muito rígidas da apresentação, com suas restrições técnicas (afinal, tratava-se de uma gravação), podem ter pesado na concepção do show. Mas não deveriam ter. Que fique bem claro: não há como levar gato por lebre comprando Mais Coisas do Brasil Ao Vivo em CD ou DVD. Ouvir-se-á boas canções e uma cantora de técnica apurada cercada de músicos excelentes. Quem estiver querendo (apenas) isso, vai festejar. Quem cobra vitalidade e emoção genuína de uma cantora, pode ficar meio decepcionado.