Entrevista: Rogério Duprat

Cansando de alimentar a fama de 'gênio recluso', o arranjador conversou sobre os seus planos para o ano 2000.

Tom Cardoso
30/04/2000
O que um maestro quase quarentão fazia segurando um penico ao lado de cabeludos talentosos numa capa de um LP em 1968? Para saber a resposta basta ouvir o disco "Tropicália", que originou um dos maiores movimentos da música brasileira neste século, revelando artistas do porte de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Rita Lee, Gal Costa e Arnaldo Baptista.

À frente dessa turma toda estava o arranjador Rogério Duprat, um ex-colega de Frank Zappa, com quem compartilhou os ensinamentos do mestre Karlheins Stockhausen, em uma escola em Darmstadt, na Alemanha. Cansado da caretice e rigidez das orquestras e louco para colocar em prática suas experimentações, Duprat criou arranjos belíssimos para este disco, como os feitos para "Baby", "Panis Et Circencis", "Geléia Geral" e "Batmacumba".

Em 1967, Duprat já tinha conquistado os tropicalistas com sua ousada orquestração para "Domingo no Parque", de Gilberto Gil, introduzindo pela primeira vez a guitarra elétrica na MPB, o que deixou puristas e nacionalistas de carteirinha furiosos. Mentor do movimento Música Nova em 1963, que reunia nomes como seu irmão Régis Duprat, Julio Medaglia e Damiano Cozzela, Rogério Duprat era chamado pelos amigos de "George Martin dos Mutantes", uma referência ao lendário arranjador dos Beatles, responsável pela mudança de sonoridade da banda inglesa.

Além de ter participado dos primeiros discos do grupo de Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Baptista, Duprat continuou seduzindo os músicos populares – fez o histórico arranjo para "Construção" e "Deus lhe Pague", de Chico Buarque, em 1971. Ao mesmo tempo, seguia deixando perplexos os colegas eruditos mais ortodoxos, cometendo algumas loucuras – chegou a ser visto e fotografado regendo o caótico trânsito de São Paulo em uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Segundo Tom Zé, que conviveu de perto com o maestro, um arranjo de Duprat era algo como escutar "Jackson do Pandeiro manejando uma orquestra de Beethoven".

Nas décadas de 70 e 80, Duprat montou um grande estúdio e produziu jingles para campanhas publicitárias e trilhas para o cinema e televisão. As intermináveis horas de estúdio lhe deixaram praticamente surdo, o que fez com que ele se exilasse num sítio em Itapecerica da Serra (SP), onde passa o tempo trabalhando em sua marcenaria e fazendo ioga.

Durante toda a década de 90, o maestro só aceitou dois convites para compor arranjos – no disco "Liga Lá" (1997), de Lulu Santos, para a faixa "Tempo/Espaço", e no "Rita Lee Acústico MTV" (1998), para a música "O Gosto Azedo". A rotina zen será interrompida este ano, quando Duprat participará diretamente de uma série de projetos. Um grande show em sua homenagem está programado para os dias 25 a 28 de outubro, no Via Funchal em São Paulo, com participação dos tropicalistas (Caetano, Gil, Tom Zé, Rita Lee e Gal Costa), de Chico Buarque e da Orquestra Jazz Sinfônica de São Paulo. O espetáculo será produzido em família – Rogério Duprat cuidará dos arranjos, o filho Rudá, da direção executiva, e o sobrinho Ruriá, da direção musical.

Ainda este ano, a obra de Duprat será tema da tese de mestrado da pesquisadora Regiane Gaúna, que será apresentada em agosto no IAP, Instituto de Artes da UNESP (Universidade Paulista). Com o título "Rogério Duprat: Um Artesão dos Sons", a tese é resultado de um intenso trabalho de pesquisa de quatro anos e, possivelmente, deve virar livro. Ainda no segundo semestre deverá ser lançado em vídeo o documentário "O Papa da MPB", dirigido por Pedro Vieira, com depoimentos, entrevistas e imagens da trajetória do maestro.

Animado com os projetos, Rogério Duprat recebeu com exclusividade a reportagem do CliqueMusic em seu escritório em São Paulo. Em plena forma aos 68 anos, o arranjador e agitador cultural conversou sobre cinema, festivais e confessou estar com saudades de trabalhar com os tropicalistas. "Não quero mais alimentar a fama de gênio recluso. Estou feliz em reencontrar os baianos, não vejo a hora de compor novos arranjos".



CliqueMusic – O sr. tem ouvido música brasileira?

Rogério Duprat – Muito pouco. Eu não quero ser chato e nem ter uma postura ranzinza, mas a música brasileira, assim como no mundo inteiro, virou um dos maiores negócios do planeta. Ficou tudo muito repetitivo. Hoje gosto de ouvir música clássica, é o que me seduz.

CliqueMusic – O que acha da invasão da música eletrônica? Já ouviu drum and bass?

Você pode chamar isso aqui de tecno, aquilo lá de não sei o quê, mas se ouvir com cuidado no final é tudo parecido. Não é de uma hora para outra que vai surgir um movimento como a tropicália, que jogou merda no ventilador. Aquilo era tão ousado que não durou muito – mandaram Caetano e Gil embora do país. Dali para cá a música popular ficou muito comercial, sem muitas novidades.

CliqueMusic – Um grande show em sua homenagem está sendo planejado para outubro, com participação de todos tropicalistas. Qual a sua expectativa para esse reencontro?


Duprat – Tive há pouco tempo com o Gil, Caetano, Tom Zé e Rita Lee numa festa da MTV (o Video Music Brasil 99, premiação dos melhores videoclipes do ano). Não gostei do resultado dos novos arranjos que fiz para "Parque Industrial" e "Batmacumba". Mas a situação era outra, fui tudo feito com muita pressa. Ando procurando algumas partituras antigas, quero dar uma renovada em alguns arranjos. Para mim vai ser ótimo voltar a trabalhar com os baianos, pois não agüento mais ser chamado nas reportagens de ‘gênio recluso’.

CliqueMusic – Como foi para o sr. ver sua obra virar tema de tese de mestrado?


Duprat – A Regiane (Gaúna) acabou com a minha privacidade (risos). No início eu não gostei da idéia. Acho meio chato ficar falando sobre o meu passado. Porém, apesar de um pouco ressabiado, acabei relaxando depois de perceber que ela não era uma pesquisadora chata, pentelha. Acabei curtindo e foi prazeroso. O pesquisador tem um olho melhor do que o objeto da pesquisa.

CliqueMusic – A tese já tem sua autorização para virar livro?

Duprat –
Sim. Gostei do jeito que a Regiane organizou o seu trabalho. Detestaria que ela fizesse uma análise teórica aprofundada sobre minha obra, acho um saco isso. Nunca pactuei com a vida acadêmica, com a rigidez das orquestras, com a caretice dos músicos eruditos e não seria agora que iria me tornar um grande teórico. Sempre levei a música como uma grande brincadeira.

CliqueMusic – O sr. já tem uma idéia de como a tese será apresentada?

Duprat –
O primeiro capítulo será reservado ao meu perfil biográfico. No segundo, serão apresentados os manifestos e movimentos de que fiz parte – a Música Nova, a Tropicália; as minhas trilhas para o cinema, os jingles etc. Por fim, na terceira parte, eu e a pesquisadora analisamos juntos cinco obras representativas – uma composição popular, uma composição erudita, um arranjo, uma orquestração e uma trilha sonora.

CliqueMusic – Por que o sr. deixou de compor trilhas para o cinema?

Duprat – Há mais de 20 anos que eu tenho problemas de audição. No processo de criação tinha sempre de ficar chateando alguns músicos para me ajudar. Além disso, a última trilha que eu fiz jogaram no lixo.

CliqueMusic – Como foi essa história?

Duprat –
Fui convidado para compor a trilha de "Marvada Carne" (dirigido por André Klotzel) em 1987. Quando foi lançado o filme, percebi que tinham jogado a trilha fora. Só tinha uns pedacinhos, não sei o que aconteceu, nunca mais falei com o diretor. O mais surrealista é que essa trilha ganhou o Prêmio Kikito de melhor música original no Festival de Cinema em Gramado e tiveram a cara-de-pau de me entregar o prêmio, que logicamente não aceitei.

CliqueMusic – O sr. compôs trilhas para vários cineastas do cinema novo, mas nunca trabalhou com Glauber Rocha. Por que?

Duprat – Ele era uma vedete. Levava o seu ego lá no alto, se achava a pessoa mais importante do planeta. Tentei assistir "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" (1969), mas fui embora no começo. Não agüentei tamanha chatice. Ver um filme de Glauber é como colocar um peso em cima de um órgão e deixar tocando durante meia hora em dó maior. Gostava do Walter Lima Jr., do Julio Bressane, uns caras mais oswaldianos, interessantes e que não tinham pose de gênio.

CliqueMusic – Depois de tantos anos, a TV Globo está organizando para o segundo semestre um Festival de Música Brasileira. O sr. aceitaria compor um arranjo para alguma música deste festival?

Duprat – Acho que não. A não ser que seja um belo bolero (risos).

CliqueMusic – O sr. foi jurado em alguns festivais e muitas vezes sentiu o peso da censura e da repressão dos militares...

Duprat – Os organizadores viviam censurando o júri com medo dos militares. No Festival Internacional da Canção de 1972, o júri, que era formado por mim, pela Nara Leão, pelo Décio Pignatari e pelo Roberto Freire, foi todo demitido, porque tínhamos resolvido dar como vencedora a canção "Cabeça", do Walter Franco, que os militares detestavam. O Solano (Ribeiro, organizador do festival e que hoje está cuidando do processo de seleção do Festival de Música da Rede Globo) lamentavelmente cumpriu a ordem de nos demitir, foi omisso na época.

CliqueMusic – Vocês chegaram até a apanhar dos seguranças do festival nesta noite...

Duprat –
O Roberto Freire (psiquiatra e escritor) ficou revoltado com a decisão da organização e combinou com um grupo que estava escalado para tocar, não me lembro qual, que ele entraria no palco para denunciar a farsa ao público. Na hora combinada, o Roberto subiu no palco e começou a protestar aos berros, mas a vaia era tão grande que ninguém ouviu nada. Os seguranças, que mais pareciam uns jagunços, tiraram ele do palco e partiram para cima da gente. Levei bastante porrada naquele dia (risos).