Ângela Rô Rô exorciza o passado

Premiada pela APCA como melhor compositora do ano por seu novo álbum, Acertei no Milênio, gravado após um jejum de sete anos, a cantora corta os excessos e volta otimista consigo mesma e com o país

Rodrigo Faour
14/12/2000
Acreditem, Ângela Rô Rô mudou. E foi uma mudança radical. Ela deixou a bebida, as drogas, os remédios, os excessos e a agressividade de lado e iniciou uma nova fase que pode ser conferida no próximo sábado, quando se apresenta no Tom Brasil (SP), lançando seu primeiro CD em sete anos. Com nove composições novas da cantora, Acertei no Milênio foi lançado na semana passada, mas logo sensibilizou o júri da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), que por causa dele concedeu-lhe o prêmio de melhor compositora do ano. Em entrevista a CliqueMusic, Ângela mostra que, ao contrário da maioria dos artistas que se convertem à religiosidade depois das loucuras do passado, preferiu se manter apenas com aquilo que tem de melhor: a inteligência, a ironia, a alegria e o senso crítico. Animada com os 35 quilos que perdeu em sua rotina saudável, ela acha que, assim como conseguiu sair do inferno, o Brasil também pode conseguir. Mesmo que aos trancos e barrancos.

CliqueMusic - Como você se sente lançando um novo disco e já ganhando um prêmio de melhor compositora do ano pela APCA?

Ângela Rô Rô - Pois é... quem será que pagou por isso? (risos) Se não foram vocês, quem pode ser? Mamãe? Não sei, é capaz... (gargalhadas). Acho maravilhoso, sensacional, bacana. É um prêmio mesmo, pois foi dado pela composição, mais do que pela coisa da canto. Acho que ganhei porque realmente o disco está bom. Tudo aconteceu porque saí de casa e encontrei a Jane Duboc no Canecão, onde fui assistir ao musical Cazas de Cazuza - que estava cheio de gente talentosa. Ela então me convidou para gravar no selo que estava inaugurando, a Jam Music. Eu disse: "Calma, estou esboçando algumas obras". Tive a lucidez de dizer a ela que não estava tão lúcida para entrar em estúdio e ela esperou um mês e meio - aí, pude completar as composições. Então, esse prêmio pelas nove músicas inéditas que fiz, três em parceria com o [tecladista Ricardo] MacCord, foi incrível. Há um tempão que eu não compunha nada.

CliqueMusic - A fase então é de bonança total...
Ângela Rô Rô - Estou saboreando a vida. Qualquer momento é bom para estar vivo. Nessa virada dos 50 anos, insisto na juventude (diz, citando a bossa 50 Anos, de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, que fecha seu novo CD). Não na dos outros, mas na minha juventude. Sempre friso isso e não é de brincadeira, porque continuo pensando como Nelson Rodrigues, que dava aquele conselho: "Jovens: envelheçam!" (risos) Estou falando de mim. Fiquei completamente careta. O que me trouxe ao estágio que estou agora foi a loucura artística, o transe xamânico. Fiquei impresionada porque, mesmo careta, a coisa da inspiração não foi embora. Isso me surpreendeu muito.

Hoje faço ginástica diariamente. Perdi 35 quilos e ainda faltam mais alguns. É lógico que ninguém vai esperar um milagre de um corpo que nunca foi exercitado, mas estou entusiasmada. Principalmente porque, em meio a esse processo, consegui fazer um disco de qualidade. Ninguem me deu cafuné, ninguém estava fazendo favor para mim. Esse convite da Jane foi fundamental numa época em que eu estava muito fraca. Mas não foi um convite no sentido "ah, pobrezinha, ela está doente, isolada, dodói, completamente pinel, babando nas coxas, vamos dar uma chance a ela". Não foi! Porque tem gente que faz o contrário. Tem gente que tortura você e tem gente que faz caridades, que no fundo são torturas. Este foi um convite sério. Quando comecei a assinar contrato com a Jam, ninguém estava com gracinha. Quem tem peninha é peteca...

CliqueMusic - O Ricardo MacCord foi seu parceiro em três músicas e arranjou todo o disco. Ele foi muito importante no processo do novo disco...
Ângela Rô Rô - Foi sim, mas não deixe ele saber! (risos) Ele sempre foi um cara talentoso desde criança. Mas ele está começando sua época de plenitude. E que bom que tenha sido comigo, apesar dele me trair com todas as outras (risos). E essa parceria já existe há 12 anos. Tem um samba que fiz, tipo exportação, Coquinho, cuja letra eu tinha deixado de raiva na secretária eletrônica dele há anos. Se não fosse ele, eu teria perdido essa letra.

CliqueMusic - O fato de você ser filha única e de ter perdido os pais nos últimos anos fez com que você fosse obrigada também a se virar sozinha e dar a volta por cima?
Ângela Rô Rô
- Não sei se é isso... Papai morreu já bem idoso, aos 86 anos, e mamãe, profundamente doente, eu fui inclusive a última a saber disso. Até eu pedi a Deus para que ela fosse embora para não sofrer. Mas por incrível que pareça, acho que hoje a gente está muito mais junto do que em vida - os três. Não é nenhuma visão de espiritismo - estou falando sério mesmo! Sempre fui muito arredia com eles porque, quando saí de casa, era superprotegida, mimada. A força de vontade da minha mãe de viver, aquela coisa forte que possuía, ela só conseguiu entranhar dentro de mim depois de morta. Quanto ao meu pai, o processo também foi parecido. Assim como larguei alguns vícios, estou largando algumas algumas neuroses antigas para, quem sabe, colher algumas neuras novas (risos).

Uma vez, num aniversário de papai, no dia dos pais, desenhei uma florzinha pequena, uma grandinha e uma média e escrevei: "Pai, mãe e filha: maior o amor do que a família". Agora, os três estão unidos como se fosse uma flor só. Então, creio que mudei não por causa do sofrimento ou da morte de ninguém. O que rolou comigo foi mesmo um transe xamânico. A alma artística soergueu-se primeiro e foi liderando a psiquê e o corpo. Inacreditavelmente, quando comecei a compor, não sabia o que estava falando. Soube só agora, há 45 dias. Impressionante! Mas isso é típico da minha obra. Somente há pouco fui ver que muitas coisas do meu primeiro e segundo discos me davam respostas para muitas passagens da minha vida.

CliqueMusic - Você dá um tom otimista à letra de Acertei no Milênio e o nosso país parece que nunca esteve pior. Como é que você conseguiu fazer um samba tão leve e agradável, em meio a uma situação tão difícil do Brasil?
Ângela Rô Rô - Juro que não é deboche! (gargalhadas) Foi a primeira música que eu fiz dessa nova leva, na virada do ano. Não sabia nem que o Morengueira estava internado e viria a falecer (N.R.: Angela se inspirou em Acertei no Milhar, sucesso de Moreira da Silva, para compor a música). Acabei pensando o seguinte: estou completamente sorvetão na testa, mas o resto está pior, para variar. Passei sozinha o réveillon, que todo mundo dizia ser o da virada do milênio. E eu largando uma casca velha, um casulo e saindo como se fosse de uma lagarta para uma borboleta, de eu para eu mesma, numa transição nítida e tão concreta. E estava passando o milênio sem me intoxicar, caretamente, depois de passar muito mal durante um ano inteiro. E minha cabeça não implodiu, não explodiu, apenas alquimizou. Não me pergunte como. E tudo começou no Acertei no Milênio.

Sem brincadeira, naquele dia disse para mim mesma: "Estou tão estranha, não sei o que está acontecendo mas tenho que ir para a frente". Não conseguia nem andar! Aí, me veio à cabeça a Etelvina, que é a mãe de Ricardo MacCord, baixou a Conceição - minha mãe -, e refleti: "Sou Conceição, vim daquilo tudo". E me lembrei da música do Moreira. Disse: "Pô, cara, quero trabalhar. Estou a fim de andar, de emagrecer - deixei de beber e estava fazendo tudo certinho, mas continuava gorda, inchando. E a partir do Acertei do Milênio deu tudo certo. Eu a compus com alguma ingenuidade. Agora, no palco, ela está mais sofisticada.

CliqueMusic - Quais são suas impressões sobre o governo FHC?
Ângela Rô Rô - Não vou tirar o meu da reta. Sempre fui um pouco alienada da política, dos nomes. O FHC eu conheço, por acaso. Eu, que sou da geração dos anos rebeldes, naquela época só me lembrava do nome do primeiro general do governo militar, o Castelo Branco. Não me lembrava dos outros. Lembro-me que o Glauber Rocha achava uma graça enorme no fato de eu não saber o nome do ditador daquele momento. Posso dizer que nesses últimos tempos eu estava passando pelo meu caos político interior e exterior. Desse caos nasceu uma revolução sem invasão e violência. Foi uma egalité, fraternité e liberté (risos). Eu mesma fui brioche, Maria Antonieta e minha própria guilhotina. Eu mesma catei uma cabeça nova na cestinha. Eu mesma fui para a luta.

Voltando à política, como tenho TV a cabo, volta e meia passo pela TV Senado, por mero acaso, não porque tenha lido algo a respeito. E... não sei, não. Está tudo muito estranho no mundo, sempre esteve. Quero contribuir com minha pessoa e minha arte, desejando o melhor para as pessoas. Eu achava que, para acontecer alguma coisa como a que está rolando agora, só com milagre. E foi tudo por esforço próprio: a purificação de organismo, a perda de 35 kg. E fiquei sem dores. Há cinco anos, estava mais nova, mas entrevada. Hoje, quando tenho alguma dor não tomo mais analgésicos. Vou ao dentista e faço quase tudo sem anestesia.

Quanto à pergunta sobre política, acho o seguinte: assim como aconteceu a explosão do caos e a luz veio para mim, torço para que ela também possa vir para o Brasil. Como tudo no universo, tudo tem jeito e pode melhorar. Acredito que podemos sanar todos os nossos problemas. Nossos senados e assembléias podem e têm que melhorar. Terá que haver muitas mudanças, mesmo que sejam a sangue frio, a ferro e fogo, sem anestesia, aos trancos e barrancos, para que haja menos dores para o povo.