A primeira vez de Noel (que não será a última)

Caixa com 229 faixas apresenta a gigantesca obra do compositor - uma revolução permanente, que a cada resgate soa mais atual

Tárik de Souza
11/12/2000
Embora tenha morrido antes dos 27 anos há 63 anos, Noel Rosa (1910-1937) deixou um legado tão rico e em muitos aspectos premonitório, com uma visão de tal forma nítida de sua época que ele permanece interagindo com seus pósteros. Pesquisada durante 13 anos pelo professor de biologia paulistano Omar Jubran, com subsídios colhidos no livro Noel Rosa, Uma Biografia, a caixa Noel Pela Primeira Vez (Velas), de sete CDs duplos com 229 faixas (incluindo uma homenagem escrita por outro bamba da Vila Isabel, o bossanovista Johnny Alf), reúne letras musicadas postumamente, composições em que a parceria de Noel era omitida (como o sucesso carnavalesco É Bom Parar, com Rubens Soares), paródias e fragmentos esparsos de sua obra que se mostra mais gigantesca a cada reavaliação em profundidade.

Muitas gravações da caixa são bastante conhecidas especialmente as de seus principais interpretes como Chico Alves (Para Me Livrar do Mal, de 1932, Não Tem Tradução, de 1933), Mário Reis (Quando o Samba Acabou, Vai Haver Barulho no Chateaux, ambas de 1933) separados ou em dupla (Fita Amarela, A Razão Dá-Se a Quem Tem, ambos de 1932), Almirante (O Orvalho Vem Caindo, 1933, Tarzan, 1936), e as duas divas favoritas do compositor, Aracy de Almeida (Palpite Infeliz, 1935, X do Problema, 1936) e Marilia Batista (com quem o próprio Noel entrou em estúdio pelas ultimas vezes em 1936, cantando com ela Provei, Cem Mil Réis, Você Vai Se Quiser e Quem Ri Melhor).

Mas mesmo desse quinteto de ases surgem surpresas ou desempenhos menos conhecidos como João Teimoso, letra de Noel musicada postumamente por Marília Baptista. Ela só a gravaria em 1962, um ano depois de Elizeth Cardoso inaugurar Balão Apagado, outro poema de Noel confiado aos guardados da mesma parceira que dedicaria um álbum duplo ao compositor repleto de revelações, em 1962. Para não ficar atrás, Aracy de Almeida com sua voz fanhosa e bluesy também prolongou a carreira póstuma de seu principal fornecedor desvelando entre outras Voltaste (Pro Subúrbio), A Melhor do Planeta (ambas em 1955), No Baile da Flor-de-Liz e Suspiro (em 1958).

Mesmo artistas de outras praias desovaram inéditas do compositor como a bolerista Linda Rodrigues (do sucesso Lama, regravado por Maria Bethânia) com Queimei o Teu Retrato, em 1956. E até a violonista da bossa nova Rosinha de Valença em Você é um Colosso, provavelmente de 1966. Num raro caso de erro do magnífico libreto que acompanha a caixa, a data indicada é 1957 quando ainda não existia a gravadora Forma, dona da faixa.

Intérpretes à altura do talento
Mesmo tendo sido um dos melhores intérpretes da própria obra (registrou nada menos de 39 inéditas solo ou em duplas com Ismael Silva, Arthur Costa, Marília Baptista, João de Barro, I.G.Loyola e Léo Villar), Noel teve à disposição (também) enquanto viveu um elenco à altura de seu talento. Além da dupla Mário & Chico, seus seguidores, Jonjoca & Castro Barbosa (o titular com Lauro Borges da rádio humorística PRK-30) gravaram também juntos (Deus Sabe o Que Faz, Dona do Lugar, Adeus, Já Tens um Novo Amor) ou separados - do fox Julieta, em 1931 ao megaclássico Feitio de Oração em 1933, este num duo inusitado entre Chico Alves e Castro Barbosa.

Ícones da época como Silvio Caldas (Mão no Remo, Pastorinhas, Pra Que Mentir) e Orlando Silva (Dama do Cabaré, Pela Primeira Vez, Cidade Mulher) também tiveram primícias do compositor. Noel contemplou até a desacreditada Carmem Miranda (ele a considerava falsa sambista) com três inéditas, as marchinhas Assim Sim (parceria com Chico Alves e Ismael Silva) e O Que É Que Você Fazia (com Hervê Cordovil) e o samba Tenho um Novo Amor (com Cartola).

Boa parte da essência do repertório, no entanto, foi entregue a Aracy de Almeida, a Dama da Central, que gerações mais recentes conhecem apenas como jurada irada dos programas de TV, ocupação que a manteve no fim da carreira. Araca foi responsável pela redescoberta de Noel quando começou a cantar seu repertório no final dos 40 e início dos 50 nas boates de Copacabana (incluindo a influente Vogue) para a elite política e cultural do país. O sucesso motivou o lançamento pela gravadora Continental (então dirigida pelo ex-parceiro de Noel no Bando dos Tangarás, João de Barro, o Braguinha) de dois álbuns de 78 rotações com esse repertório.

Outro ex-colega de Bando dos Tangarás, Almirante promoveu uma reavaliação do legado noelesco numa série de programas da rádio Tupi, No Tempo de Noel Rosa, de 1951 (depois ainda editaria um livro com esse nome), onde várias inéditas incluídas na caixa foram reveladas, entre elas a canção sertaneja Mardade de Cabocla, composta sob encomenda do intérprete, José Souza Pinto, o Alegria, um dos motoristas de táxi que servia o compositor. A tarefa de resgate e aprofundamento no repertório de Noel também foi empreendida pela outra diva eleita, Marília Baptista que gravou discos dedicados a ele nos 50 e 60, e mais recentemente ao trabalho de pesquisa e regravação do grupo Coisas Nossas e seus ex-integrantes como Henrique Cazes e Carlos Didier (co-autor da biografia do compositor), que mapearam uma parte ainda oculta da herança musical do autor.

Táticas coloquialistas
A espantosa atualidade desse criador tão jurássico num país de memória programada para os regulamentares quinze minutos da fama deve-se a vários fatores. Noel cerrou fileiras com os modernizadores do samba, gente do Estácio (foi parceiro de Ismael Silva e Bide) e dos morros (de Cartola, Antenor Gargalhada e João Mina) que fugia ao estereótipo do maxixe da era Sinhô. Além disso, aliado a comparsas tão díspares quanto Vadico, Ary Barroso, Donga, Orestes Barbosa, Lamartine Babo e Canuto, foi um cronista/jornalista/filósofo de seu tempo utilizando táticas coloquialistas que se opunham ao ao gongorismo poético de muitos contemporâneos.

Valia desde o trocadilho deslavado (Você Só... Mente) ao abstracionismo (Cor de Cinza, Triste Cuíca), o nonsense (Um Gago Apaixonado), além da crítica social (Onde Está a Honestidade?, O Orvalho Vem Caindo, Não Tem Tradução, Filosofia, João Ninguém) e da guerra conjugal onde a mulher quase sempre é a vilã (Mulher Indigesta, Faz de Conta Que Eu Morri, O Maior Castigo Que Lhe Dou, Tenho Raiva de Quem Sabe, Quem Não Quer Sou Eu ). Poetando sem rodeios, utilizando do fox à moda de viola e até a rumba, mas dominando como poucos o samba em todos os seus formatos, Noel construiu uma obra em progresso, uma revolução permanente que a cada resgate soa mais atual.

Ouça trechos dos discos da caixa:

Volume 1 ouvir 30s
Volume 2 ouvir 30s
Volume 3 ouvir 30s
Volume 4 ouvir 30s
Volume 5 ouvir 30s
Volume 6 ouvir 30s
Volume 7 ouvir 30s

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